segunda-feira, setembro 05, 2011

Day 27: Favorite love story



Primórdios
Irmã Maria (Colombo, 1949: Vallipuram)


Ela chega no início da estação seca, com o bebê no colo, usando a cor branca das viúvas. O fino sári de gaze que envolve seu corpo alto, esbelto, é claramente de boa qualidade, mas está rasgado e sujo de poeira, escuro como sua pele macia. Ela é magra demais - todas as freiras concordam quanto a isso. Quando duas freiras a encontram vagando muda na estrada próxima ao convento da Sagrada Família, os ossos salientam-se sob a pele do seu rosto, suas costas, suas costelas. A mulher seria linda se não fosse tão magra e tão escura. O bebê é claro e quase tão magro quanto a mãe.
Quando o encontram, a irmã menor, Irmã Anne, estende a mão para segurar o braço da mulher, que parece tonta, prestes a desmaiar. Mas a mulher grita e se agacha na estrada de terra, enroscando o corpo em volta da criança; a freira recua. [...]
Irmã Anne fala baixinho, delicadamente, com a mulher. Apesar do bebê que carrega nos braços, ela parece pouco mais que uma menina - deve ter uns dezoito anos, e seu rosto desprotegido está manchado de lágrimas. Sem tocar na mulher, ela a convence a se levantar de novo, a caminhar pela estrada. O sol está alto no céu quando elas a encontram; mas já está quase se escontendo atrás do topo da palmeira mais próxima quando elas conseguem fazê-la entrar no convento. [...]
A mulher não consegue fazer amizade logo, porque é muda. Ela tem uma lingua, mas não parece saber como usá-la. [...] Os boatos se espalham rapidamente entre as freiras.
Irmã Anne é a mais generosa delas; ela afirma que a pobre mulher deve ter ficado viúva e sem família em consequência de algum terrível acidente.[...] Outras histórias são contadas, é claro, mas nenhuma é tão apreciada. [...] Uma das freiras dá à mulher o nome de Maria. Elas a chamam assim, cada uma decidindo em sua mente se está falando com alguém mais parecida com a Virgem Santíssima ou com Madalena, a prostituta.

Numa aldeia ao norte, uma mulher está lavando louça, de frente para a pia.
- Você não devia tê-los deixado sozinhos! - Um homem está parado atrás dela, alto, de ombros retos. Ele tem a pele clara, é bonito como um ator. Ela não se vira para ele; tudo o que ele pode ver são suas costas. São costas atraentes - a pele de sua cintura acima do decote do sári de algodão é clara, sem manchas.
- Foi só por alguns minutos, enquanto eu lavavao rosto. Eu estava cansada, Sundar - [...] Ele segura o ombro dela com a mão direita; e a faz virar.
- Cansada? Por quê? - A voz dele é ríspida. - Você não faz nada, Sushila. Ela deu banho nele, alimentou-o, brincou com ele. Você a mandou fazer tudo isso.
Ela segurou um copo meio lavado. - Eu sei como lidar com ela. Sempre soube.
- Ela é uma débil mental. Nós nunca deveríamos...
Sushila olha para ele, com as sobrancelhas erguidas. - Marido morto, bebê morto. Uma mulher sozinha... par aonde poderia ter ido? Que vida a minha irmã teve? - Ela torna a olhar para baixo. - E eu precisava dela.
Ele vira de costas e dá alguns passos, depois torna a se virar para ela. - Como você pôde deixá-los sozinhos? - A voz dele é baixa, angustiada.
- Eu só... tinha que lavar o rosto. Foram só alguns minutos. - Ela contempla as mãos, que seguram o copo molhado. Elas estão cobertas de anéis de ouro. - Sundar, o que vai acontecer agora?
- A polícia vai cintinuar procurando. Nós vamos continuar procurando. Nós vamos achá-la. - Ele se senta, o mais longe possível de Suchila. Até onde ela poderá ter ido? - ele pergunta baixinho.
Ela não responde nada, apenas torna a se virar para a pia.Mas não recomeça a lavar. O copo continua apertado em sua mão, delicado, frágil.

Elas estavam sentadas no jardim quando isso aconteceu, Sushila num sári rosa como as buganvílias que subiam em arco. Sua irmã, usando o branco das viúvas, segurava o
bebê, cantarolando baixinho para ele, sem palavras. Sua irmã não falava desde que a doença levara embora o seu marido e o seu bebê. Mas ela tinha sido uma boa ama-de-leite para o bebê, tinha cuidado dele, protegendo-o do sol. Antes da chegada dele, Sushila nunca tivera este cuidado.
Sushila os observa, com o coração batendo mais depressa. Ela teve uma ideia. As palavras estão esvoaçando em sua cabeça, loucas para sair. Ela as tem reprimido há dias, semanas. Mas está prestes a perder a batalha. Dentro de poucos minutos, vai começar a falar, baixinho, suavemente, quase como se estivesse falando consigo mesma. Ela vai dizer que existem lugares para onde uma mulher pode ir. [...] Há lugares que recebem uma mulher, cuidam dela.
Ela irá mencionar um desses lugares, o convento da Sagrada Família. [...] Sushila irá dizer que uma criança iria sentir-se feliz num lugar como aquele, abrigado, seguro. Ela vai dizer, ainda mais suavemente, que uma criança deveria ter uma mãe que a amasse. Em seguida, ela vai se levantar, entrar em casa, deixando-os sozinhos no jardim. Ela os deixará sozinhos por um longo tempo. Sua irmã é muda, mas não é burra.

Sushila está terminando o banho. Ela pega a canca de lata , joga água sobre a cabeça, sobr seus longos cabelos negros e corpo sensual. Este amoleceu no último ano, tornando-se desconfortavelmente pesado. Sua barriga agora está saliente, suas coxas roçam uma na outra quando ela anda. Seus seios estão finalmente diminuindo, mais ainda pendem no peito. Sushila não suporta tocar nesse corpo desconhecido.
Suas mãos se movem suave e mecanicamente - mergulhando a caneca, despejando a água. Ela está fria; ela estremece. Ela termina e sai do cômodo. Ela se seca, de olhos fechados. Envolve o corpo com um sári azul de seda e caminha de leve pelo corredor e entra no quarto. [...]
Sushila se senta no chão de terra, [...] e observa o marido adormecido. O rosto dele é liso, sem rugas. Ele ainda é tão bonito quanto no dia em que se casaram. [...] Ele não é um marido ruim para ela. Talvez ela mesma devesse ter tomado o caminho do convento, feito voto de silêncio e desaparecido dentro de um hábito negro, um capelo escondendo seu cabelo sedoso e abundante. Esta solução não havia lhe ocorrido na hora. Não era exatamente uma solução.[...]

A madre recebe o jovem casal amavelmente; quando a porta se fecha atrás deles, os cochichos começam entre as freiras. Como eles são bonitops! Como a pele deles é clara! O bebê tem os olhos dele? Ele é um marido? Um irmão?
Maria dorme profundamente a manhã inteira, durante as horas que o casal passa fechado com a Madre Superiora. Quando os três finalmente saem da sala, caminho juntos pelo longo corredor branco até o quarto dela.Da porta, eles vêem Maria e o bebê, dormindo. Sushila avança e toda delicadamente o ombro de Maria. Ela acorda imediatamente e, ao ver a irmã, começa a gemer. O gemido vai crescendo até se tranformar num choro medroso, entrecortado. [...]
Sundar entra, olha para a esposa. Olha para Maria. Então se inclinae tira o bebê dos braços dela. Ele se vira, abraçado à criança, com lágrimas nos olhos. Então sai. Sushila afasta algumas mechas de cabelo da testa de Maria, depois também dá meia-volta e sai atrás do marido, deixando a irmã para trás, aos cuidados das freiras. Ela não chora, mas nas semanas seguintes nunca se afasta mais do que alguns passos do marido e do filho.
Os lamentos aos poucos se tornam gemidos quase inaudíveis. Um dia, Maria volta a trabalhar no jardim. Ela não sorri e nunca fala. As freiras continuam a especular, a conjeturar, mas embora discutam o caso pelo resto da vida, inventem mil histórias diferentes, nunca saberão a verdade. Nunca chegarão nem perto dela.

Corpos em movimento
Mary Anne Mohanraj - Tradução de Léa Viveiros de Castro
Editora Rocco, 2006


Corpos em movimento é uma coletânea de histórias interligadas que traçam o pano de fundo emocional, sexual e geográfico de duas gerações de famílias do Sri Lanka na última metade do século XX. Nestas histórias, o fluxo das imigrações modela a vida, o amor e as relações, num país embebido em séculos de tradição, mas obrigado a encarar a modernização dos costumes sociais.
Numa terra de casamentos arranjados e papéis marcados, especialmente para as mulheres, as narrativas exploram o conflito entre gerações e gêneros no momento em que as pessoas fazem suas próprias escolhas acerca do futuro [...].
[...] Mary Anne Mohanraj usa as palavras com maestria para moldar momentos íntimos, fragmentos amorosos, paixões secretas, as ambições e os desafios espirituais dos mesmos de cada família em busca de um sentido para suas vidas [...]. (Orelhas)

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