quarta-feira, agosto 01, 2007

Página 35, duas linhas

Um dos blogs que eu freqüento é o do Mizarela. Lendo este post comecei a pensar numa prática muito comum em jornais e revistas como saída para o "E se não foi assim?".

Tipo: você acompanha a PM numa Operação Asfixia (que é como eles chamam aquela presepada de cercar a favela e subir o morro atirando). Então. Você vai, fica lá esperando o tiroteio terminar (porque quem tem que ir lá são os fotógrafos e cinegrafistas). Aí depois que a fumaça desce você cola no comandante do batalhão (aprende aí: quando entrar em morro depois de invasão da PM vira a sombra do tenente-coronel ou do coronel: traficantes não atiram nessa figura. Dá muita merda depois, se fizerem o moço de alvo).

Enfim, você cola nele e acompanha quando vem os PMs darem relatório. "Pegaram quantos?" "Uns oito, coronel. Tudo traficante, avião." E aí vêm descendo os soldados do Bope (pra quem não sabe, Batalhão de Operações Especiais - aquela divisão da PM que tem como símbolo uma caveira com uma adaga enterrada bem em cima) carregando os corpos, trilhas de sangue pra tudo quanto é lado, fuzil pra cima.

A família chora, você conversa com eles e começa a ouvir coisas do tipo "Ele tava na laje fumando escondido de mim, porque sabe que eu não gosto, a polícia chegou gritando "Perdeu! Perdeu!" e ele nem teve tempo de dizer nada: tava agachado, levantou, levou um tiro no meio do peito. Mas olha aqui a carteira dele: ele trabalha, estuda!" E coisas do tipo.

E você volta e bate a matéria, falando dos dois lados. E no dia seguinte abre e tá lá: "Segundo a PM, os mortos SERIAM traficantes a mando do gerente Fulano. Eles TERIAM atirado contra a polícia. Eles ESTARIAM envolvidos numa disputa por áreas de drogas." Sobre o que as famílias disseram, nem uma palavra.

Se não for traficante a família vai processar? Não. Alguma ONG? Quem sabe? "Mas o jornal não escreveu que era certeza; eles SERIAM traficantes". Do começo ao fim, futuro do pretérito: não apenas o tempo verbal, mas uma certeza, se não tivesse ficado pra sempre no passado: "Morto durante a invasão da favela pela polícia, estava estudando para fazer o vestibular e tentar uma vaga numa faculdade"; "Tinha começado a trabalhar num escritório como contínuo, mas queria mesmo era estagiar na área de informática".

Você lê isso no dia seguinte, nos jornais?
Eu nunca li.

2 comentários:

Angela Scott Bueno disse...

Eu já. Há muito tempo atrás, quando existia jornalismo. O cara ia lá, fazia a matéria e o jornal bancava a afirmação. Não há realidade que se sustente com tanto pretérito na cabeça. Acho que é de propósito, ajuda na corrupção de todos os lados.
beijos pra você e meninas,

Ana disse...

Ai, não sei. Não sei mesmo. Pra família nunca é bandido, né? Mas o que tem de trombadinha na rua assaltando por merreca... Olha, isso é tão complexo que é difícil mesmo bancar opinião.